sexta-feira, 27 de fevereiro de 2009

VINICIUS DE MORAES Altas Intensidades Francisco Bosco-Revista Cult (nr. 73) 01/10/2003


Ética e estética nas letras de música de Vinicius de MoraesI Há uma força que atravessa, de cabo a rabo, o conjunto das letras de música de Vinicius. Ou melhor, as letras surgem dessa força e procuram transformar-se nela, tornando-se a sua verdade. De que força se está falando, todos que ouvimos suas letras o sabemos bem: trata-se da força do amor. Mas não é isso, ainda. É preciso perguntar de onde vem essa força, de que por sua vez as letras vêm. Para Vinicius, a experiência do amor é trágica. O que responde por essa tragicidade? O fato de que, para ele, o amor acaba: o amor é uma intensidade que queima, consome-se e consuma-se, esvaziando-se fatalmente. O que fazer, então, diante dessa experiência? Aqui começa a força: Vinicius fez um pacto com as altas intensidades, e dispôs-se a pagar seu preço, igualmente alto. Pois se o amor é uma alta intensidade que, no tempo, esvazia-se, só lhe restava aceitar essa dinâmica e acatar o fim do amor - o que significava abrir novamente a possibilidade de um novo amor, da vivência de uma nova intensidade alta, e assim sucessivamente.A força de Vinicius - de suas letras e de sua vida, pois ético e estético estão aqui indissociavelmente ligados - vem daí, desse pacto com o que para ele se apresentava como alta intensidade. Essa, às vezes, pode - e deve - ser negativa; faz parte do preço. Pois é preciso trazer à tona, nesse pacto tão exigente, a categoria de sacrifício: todas as perdas, toda a interrupção, tudo aquilo de que é preciso desfazer-se para manter-se fiel às altas intensidades. Todos os lutos. A força é da ordem de uma firmeza ética. No pacote do pacto vêm a luminosidade e a obscuridade, os recomeços e os términos - os extremos das altas intensidades. Ou ainda: altas intensidades só têm extremos, não há meio-termo.


II Vamos contar essa estória de outra maneira; em parceria, em “canto e contraponto”, como se faz na música. Comecemos por aqui: “Perto da dor de saber / Que o meu céu não existe / Que tudo que nasce / Tem sempre um triste fim / Até meu carinho, até nosso amor”. (Andam dizendo - Tom Jobim e Vinicius de Moraes). A experiência trágica do amor, portanto: tudo que nasce termina, e não há “céu”, não há abrigo onde se proteger dessa verdade. E quando o amor acaba, “É inútil fingir / Não te quero enganar / É preciso dizer adeus”. (É preciso dizer adeus - Tom Jobim e Vinicius de Moraes). É preciso, mas é duríssimo, “Porque o amor é a coisa mais triste / Quando se desfaz”. (Amor em paz - Tom Jobim e Vinicius de Moraes).E, no entanto, o pacto com as altas intensidades - as quais talvez Vinicius chamasse dessa maneira: a felicidade. “A felicidade é como a pluma / Que o vento vai levando pelo ar / Voa tão leve / Mas tem a vida breve / Precisa que haja vento sem parar”. (A felicidade - Tom Jobim e Vinicius de Moraes). A felicidade é efêmera, como as altas intensidades. Precisa haver uma força que a mantenha no ar, ou melhor, que volte a erguê-la do chão, por onde deverá passar, sempre. A experiência do chão é terrível, mas é preciso suportá-la, pois o temor pode botar tudo a perder: “Mas o amor sabe um segredo / O medo pode matar o seu coração”. (Água de beber - Tom Jobim e Vinicius de Moraes). É preciso enfrentar o sacrifício, “Por que a vida só se dá / Pra quem se deu”. (Como dizia o poeta - Toquinho e Vinicius de Moraes). Nos momentos de iluminação amorosa, no interior da alta intensidade, ocorrem vislumbres do infinito, promessas de repouso e solução: “A esperança divina de amar em paz” (Se todos fossem iguais a você - Tom Jobim e Vinicius de Moraes). Pouco importa que a esses momentos sucedam novamente as dúvidas e os términos; isso é apenas o preço - alto, mas o preço. O que importa é que “A vida é a arte do encontro / Embora haja tanto desencontro pela vida”. (Samba da benção - Baden Powell e Vinicius de Moraes).


III Vivemos em um tempo de déficit de subjetividade. O que isso quer dizer? Que há um empobrecimento na experimentação de formas de vida. Os grandes mitos da sociedade hoje são, quase sempre, figuras cuja presença no imaginário das pessoas se deve a um aparato aurático produzido pela repetição infinita de sua imagem nos meios de comunicação de massa. Para além ou aquém dessa aura midiática, pouco resta. Assim, os ícones do espetáculo não se apresentam como referências para experimentações de formas de vida, e a arte - embora, a meu ver, viva um momento histórico vigoroso - não se apresenta, observando em termos de tendências gerais, como uma convergência do ético com o estético.Vinicius faz parte de uma linhagem de artistas que continuam, sob suas diversas condições históricas, o projeto romântico de unir arte e vida. No ato de escrever esteve em jogo, para ele, a aventura de escrever a própria vida. Era um artista que criava formas de vida, e que, como todo artista, engajou-se na luta de tentar dar vida às suas formas (os poemas, as letras, as peças de teatro, etc).Em um momento como esse, em que experimentações de formas de subjetivação ao nível dos afetos, da produção de relações, são desencorajadas pela sociedade do consumo e do espetáculo, os valores que Vinicius faz circular na cultura (em suas letras, mas também em todo o rastro de signos que disseminou em sua passagem) tornam-se, mais do que desejáveis, urgentes: o amor, a amizade, a invenção de formas de vida, a exploração corajosa do amplo território da imanência. A vida.

quinta-feira, 26 de fevereiro de 2009


Ausência


Eu deixarei que morra em mim o desejo de amar os teus olhos que são docesPorque nada te poderei dar senão a mágoa de me veres eternamente exausto.No entanto a tua presença é qualquer coisa como a luz e a vidaE eu sinto que em meu gesto existe o teu gesto e em minha voz a tua voz.Não te quero ter porque em meu ser tudo estaria terminadoQuero só que surjas em mim como a fé nos desesperadosPara que eu possa levar uma gota de orvalho nesta terra amaldiçoadaQue ficou sobre a minha carne como uma nódoa do passado.Eu deixarei... tu irás e encostarás a tua face em outra faceTeus dedos enlaçarão outros dedos e tu desabrocharás para a madrugadaMas tu não saberás que quem te colheu fui eu, porque eu fui o grande íntimo da noitePorque eu encostei minha face na face da noite e ouvi a tua fala amorosaPorque meus dedos enlaçaram os dedos da névoa suspensos no espaçoE eu trouxe até mim a misteriosa essência do teu abandono desordenado.Eu ficarei só como os veleiros nos portos silenciososMas eu te possuirei mais que ninguém porque poderei partirE todas as lamentações do mar, do vento, do céu, das aves, das estrelasSerão a tua voz presente, a tua voz ausente, a tua voz serenizada.

Ah...Pessoa...

48.

Para compreender, destruí-me. Compreender é esquecer de amar. Nada conheço mais a tempo falso e significativo que aquele dito de Leonardo da Vince de que não se pode amar ou odiar uma coisa senão depois de compreendeê-la.

A solidão desola-me; a companhia oprime-me. A presença de outra pessoa descaminha-me os pensamentos; sonho a sua presença com uma distracção especial, que toda a minha atenção analítica não consegue definir.